27 de agosto de 2008

Conto de fadas moderno

Ela entrou no elevador e apertou o botão do térreo. Virou-se para trás, olhou o espelho e não se reconheceu. A primeira lágrima cortou o lado esquerdo de sua face. Até onde isso iria levá-la?

Ela estava sozinha agora.

“Prefiro morrer, a ter que te agüentar por mais um dia”, fora a frase que havia fechado a noite. O eco de cada palavra a fazia soluçar, mas ela ainda precisava passar pela portaria e enfrentar três ônibus até chegar em casa. Não podia se dar ao luxo de soluçar. Logo ela, que nunca gostou de chorar em público, estava do outro lado da cidade em prantos.

Passou apressada pela portaria, aproveitando a chegada de um entregador de pizza que segurou o portão para ela. Nem ao menos agradeceu, ou deu “boa noite” ao porteiro que, desde o momento em que ela havia chegado, sabia que as coisas não estavam bem. Ela não conseguia mais pensar em nada.

Eram quase dez da noite de uma sexta-feira que definitivamente não terminou bem. todos já haviam saído do trabalho, mas ela tinha que trabalhar mais, seus horários não eram normais como o de todos os outros; seu trabalho também não era normal. Para dizer a verdade, o que se pode chamar de "normal" é algo que ela nunca gostou, e uma palavra que ultimamente representa exatamente o antônimo do que se transformou sua vida.

Tirou o celular do bolso, à medida em que suas lágrimas ficavam mais grossas. Acendeu um cigarro e tentou caminhar mais depressa, para atravessar ainda com o farol vermelho, porém não conseguiu. Pensou por um momento inclusive em atravessar mesmo assim, e deixar que algum carro resolvesse de uma vez por todas os seus problemas, mas não foi o que ela fez. Parou junto a um poste, na calçada, e discou rapidamente a sequência de oito números que chamava quase que diariamente, para bons ou maus acontecimentos. Sete toques, e a mensagem gravada por uma locutora de aeroporto: "Sua mensagem está sendo encaminhada para a caixa de mensagens, e estará sujeita a cobrança após o sinal"... Pensou na amiga, e imaginou por que ela nunca atendia o celular. Ligou na casa mesmo, tentando controlar o choro caso algum dos familiares dela atendesse o telefone.

"Boa noite, desculpe incomodar a esta hora"... Ela vivia pedindo desculpas. Para seus pais, por ter momentos explosivos em casa; para seus amigos, por não saber controlar suas palavras duras; para seu chefe por atrasar o serviço. De tanto pedir desculpas, as palavras começaram a não mais fazer sentido para ela. Nem para ela, nem para os que as ouviam, pois já saíam de sua boca contaminadas pelo vazio intencional.

Conversou com a amiga por dezessete minutos e cinquenta e seis segundos. Foi o tempo de chorar, lamentar, perguntar por que e mesmo ver se a amiga sabia o que havia feito aquela boca dizer tais palavras para ela, minutos atrás: "Aquele avião deveria ter caído junto com você, assim eu não precisaria ter passado metade do desgosto que você me fez passar!" As palavras ainda ecoavam em seus ouvidos, enchendo os seus olhos de água e seu coração de rancor. Enchendo também a paciência da amiga, que pelo outro lado da ligação nada podia fazer, a não ser dar palavras de incentivo e de consolo, para que ela não tentasse nenhuma atitude desesperada ou impensada.

"Qualquer dia ele me mata", pensou, acariciando o peito. "Se não for fisicamente, me mata de tristeza", concluiu. Viu um ônibus vinho se aproximando do ponto e deu o sinal. Já haviam passado quatro que iam para o mesmo destino, mas ela não se sentia em condições de se mexer. Neste quinto resolveu fazer força, levantou o braço esquerdo e esperou que o grande coletivo encostasse perto da calçada.

"Bicho barulhento", pensou com ela, enquanto passava pela catraca e o motorista acelerava, rumo ao centro da cidade. Pensou ainda no outro ônibus que teria que tomar, e o tempo que levaria até chegar em sua casa. Seus olhos estavam fixos em lugar algum, ela sentou-se na primeira dupla de cadeiras que encontrou vazia, largando a pesada mochila no banco junto à janela e o próprio corpo na cadeira ao lado. O celular ainda nas mãos, discou para a operadora, certa de que seus créditos haviam chegado ao fim com a última ligação.

(Continua...)
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